A justiça dos poderosos
“Afinal a polícia está a trabalhar para a segurança pública ou para a segurança da Huawei?” Foi esta a dúvida levantada por um cibernauta no Weibo, a versão chinesa do Twitter, no início deste mês. Foi então que veio a público que a gigante chinesa das telecomunicações tinha acusado um ex-funcionário de extorsão, acusação que levou o homem a ficar detido durante mais de oito meses à espera de uma acusação formal que nunca chegou.
Li Hongyuan trabalhou na Huawei durante 12 anos, mas foi despedido em Janeiro de 2018 após ter denunciado internamente uma alegada fraude no departamento em que trabalhava. Ele negociou com a empresa e garantiu uma indemnização de quase 305 mil yuan (39,2 mil euros). Mas, após exigir também o pagamento de um bónus anual, Li foi detido há um ano pela polícia em Shenzhen, uma cidade no sul da China onde se situa a sede da Huawei, e enviado para a prisão por alegadamente ter divulgado segredos comerciais da empresa. Num toque kafkiano, só em Abril passado lhe foi dito que afinal a detenção estava relacionada com “a extorsão de 300 mil yuan”.
Li só foi libertado em Agosto passado, após o procurador encarregue do caso admitir não ter provas suficientes para apresentar uma acusação formal, disse ele à imprensa chinesa. O antigo funcionário da Huawei processou o Estado e acabou mesmo por receber uma indemnização no valor de 108 mil yuan, numa rara assunção de culpa por parte da justiça chinesa.
A independência do sistema legal chinês é notoriamente frágil, da polícia aos tribunais, passando pelo Ministério Público. Aliás, a própria constituição sublinha que estas três instituições estão sujeitas ao controlo do Partido Comunista. Por isso mesmo muitos peritos estrangeiros se recusam a qualificar a China como um “Estado de direito”.
Mas não é só o governo de Pequim que “tem as costas quentes”. O caso de Li demonstra como os grandes grupos económicos chineses usam o seu poder e influência para garantir também a conivência da justiça.
Pisar o elefante
“Uma empresa que é demasiado poderosa para nem sequer ser criticada é ainda mais perigosa do que uma empresa grande demais para falir”, disse ao portal noticioso Jiemian Nie Huihua, professor de economia na Universidade Renmin, em Pequim.
A Huawei recusou-se a pedir desculpas e defendeu que estava no seu direito em denunciar Li à polícia. Curiosamente, a empresa disse também “apoiar o direito dele de procurar compensação através dos meios legais”.
A resposta não caiu bem junto dos cibernautas chineses, que tornaram o caso um dos tópicos mais populares no Weibo. Isto apesar de aparentemente algumas publicações sobre o incidente terem sido eliminadas pela censura, algo que aconteceu também com uma entrevista de Li a um portal noticioso.
A declaração da Huawei foi vista como “arrogante” e “cruel”. “O elefante esmagou-te, mas pelo menos podes também pôr-lhe um pé em cima”, escreveu um cibernauta no WeChat, o equivalente chinês ao Facebook. “Quando uma empresa se torna uma máquina operada a sangue frio, de forma opressiva e desumanizada, que sentido tem a sua existência?” perguntou o ‘blogger’ Jiang Jingjing.
O tom do debate passou para a ironia poucos dias depois, quando a directora financeira – e filha do fundador – da Huawei, Meng Wanzhou, escreveu uma carta aberta sobre “o medo e dor” que sente desde que foi detida no Canadá, a pedido dos Estados Unidos, há cerca de um ano.
Cibernautas como Jiang Feng, um psiquiatra, não perderam a tempo a relembrar que Meng – conhecida como “a princesa Huawei” – está a aguardar julgamento em prisão domiciliar “numa solarenga mansão de luxo” em Vancouver. “Então e a dor dos 251?” perguntou um outro chinês, referindo-se ao número de dias que Li passou na prisão.
“Sonho chinês”
Como símbolos do que Xi Jinping chamou de “rejuvenescimento nacional”, os gigantes tecnológicos como a Huawei têm tido a opinião pública chinesa do seu lado. As acusações feitas no Ocidente à empresa foram vistas como um ataque à própria China.
A reacção virulenta nas redes sociais internacionais aos protestos em Hong Kong – fomentados em grande parte por ‘bots’, perfis falsos geridos pelas autoridades chinesas – criou uma imagem dos cibernautas chineses como um grupo homogéneo e facilmente manipulável pela propaganda estatal.
Mas a realidade é, como sempre, muito mais complexa e o nacionalismo tem os seus limites. Os mesmos chineses que boicotaram os telemóveis da Apple, rival norte-americana, e fizeram as vendas domésticas da Huawei aumentar dois terços no último trimestre, começaram agora a falar de boicotar os produtos da empresa chinesa. Fez furor nas redes sociais chinesas uma imagem satírica onde um par de algemas era descrito como uma nova bracelete inteligente da Huawei.
A Huawei e outros gigantes da área da tecnologia tinham sido já alvo de críticas por obrigarem os seus funcionários a aceitarem trabalho extraordinário – frequentemente não remunerado – através do chamado horário 996 (das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana).
Afinal, a maioria dos chineses tem conhecimento directo do que é ver os direitos violados pelo patrão ou pela polícia. Uma experiência real, muito mais forte do que o vago apelo do nacionalismo.
“Muitos chineses da classe média costumavam acreditar que, se frequentassem boas escolas, trabalhassem arduamente e não se preocupassem com os assuntos da actualidade, poderiam realizar o seu ‘sonho chinês’”, escreveu um cibernauta, referindo-se ao omnipresente slogan do presidente Xi Jinping. “Mas o sonho desvaneceu-se”.
Fotografia de destaque: pixabay.com