Huawei e o nacionalismo chinês
Um dia em que o frio e a neve me tinham fechado em casa, na terra natal da minha esposa, uma pequena cidade na província de Jiangsu, decidi usar uma ferramenta do WeChat, a aplicação social mais usada na China continental, que permite meter conversa com pessoas ao nosso redor. Pouco depois uma jovem chinesa adicionou-me na aplicação e, sem mais demora, envia-me imediatamente um vídeo com cerca de quatro minutos.
O vídeo descrevia, usando uma retórica nacionalista particularmente inflamada, os apuros em que a Huawei se viu envolvida no estrangeiro, acusando a rival norte-americana Apple de tentar sabotar a expansão do gigante chinês das telecomunicações. O vídeo terminava apelando a um boicote dos telemóveis da Apple, algo que de facto acabou por acontecer, dizem analistas. Intrigado, perguntei à rapariga por que me tinha enviado o vídeo. “Inspirador”, respondeu ela.
A recente prisão de Meng Wangzhou, a directora financeira da Huawei no Canadá, a pedido dos Estados Unidos, foi apenas o último e o pior incidente a atingir a reputação da empresa chinesa no estrangeiro. Entretanto vários países, incluindo a Índia, o Reino Unido e a Austrália, colocaram restrições à participação da Huawei no sector das telecomunicações.
Em causa, dizem os críticos da companhia no Ocidente, o papel que o governo chinês tem no processo de decisão da Huawei. Nos últimos anos, o Presidente Xi Jinping ordenou a criação de comités internos do Partido Comunista nos principais grupos empresariais chineses e a Huawei não foi excepção. Outra preocupação é o dever, inscrito na lei chinesa, de qualquer empresa de colaborar com as autoridades em questões de segurança nacional. Para os críticos, isto significa que a Huawei teria motivação para utilizar as redes de telecomunicações no estrangeiro para facilitar a espionagem cibernética por parte do Estado chinês.
A China rejeita estes receios e tem descrito o caso como sendo o resultado final da luta entre Pequim e o Ocidente pelo controlo da nova tecnologia 5G. Uma tecnologia que poderá acelerar exponencialmente a comunicação, permitindo por exemplo a utilização universal de sensores ligados à Internet em objectos do quotidiano, desde filtros da água até automóveis – aumentando exponencialmente os receios de actos de sabotagem cibernética. No entanto, o 5G exigiria não apenas a instalação de novas redes de telecomunicações mas também um consenso a nível mundial quanto aos padrões a serem utilizados. E neste momento é a China que vai à frente no que toca à tecnologia 5G, com 10 mil estações de base a serem instaladas até ao final de 2020.
“Amamos a marca nacional”
A adversidade que a Huawei tem enfrentado no Ocidente tem sido utilizada pelas autoridades chinesas para fomentar uma reacção nacionalista. A exemplo da resposta virulenta da opinião pública portuguesa às acusações de violação que pendem sob o futebolista Cristiano Ronaldo, que se tornou um símbolo do país, também o sucesso dos gigantes tecnológicos chineses no estrangeiro tinha até agora sido usado como prova daquilo que Xi Jinping chamou de “rejuvenescimento nacional”. Ou seja, as acusações feitas à Huawei foram vistas pela opinião pública chinesa como um ataque à própria China.
A resposta ao ataque voltou a aparecer no meu computador umas semanas depois, quando começou a circular nas redes sociais chinesas – nomeadamente partilhado pelos média estatais – um vídeo chamado “A beleza da Huawei”. Nele um grupo de crianças canta versos como “Nós amamos o nosso país, amamos a marca nacional Huawei” e “os chips [de computador] feitos na China são os mais preciosos”. A estridência do vídeo foi ridicularizada na Internet e obrigou mesmo a própria empresa a distanciar-se da iniciativa, alegando que tinha sido feito por cidadãos.
Tal como em muitos outros países, a intensidade do nacionalismo chinês explica-se por uma mentalidade de cerco. Um século de humilhantes derrotas frente a exércitos estrangeiros, a começar pelas duas Guerras do Ópio entre 1839 e 1860 – oportunidade aproveitada por Portugal para reforçar o seu controlo sob Macau –, pesa ainda sob a sociedade chinesa. Qualquer caso de insensibilidade cultural é imediatamente visto como um exemplo de desrespeito pelo país. Que o diga a Dolce & Gabbana, cuja imagem e vendas foram atingidas por um vídeo publicitário que troçava de uma jovem chinesa a tentar comer pizza e outras especialidades italianas com pauzinhos.
O medo das massas
O Partido Comunista chinês tem utilizado as reacções nacionalistas da população como forma de criar distracções ou aplicar pressão a governos estrangeiros durante disputas diplomáticas. Um alvo crónico é a relutância japonesa em reconhecer os crimes cometidos na China durante a Segunda Guerra Mundial, mas não é o único. Em 2017, a decisão da Coreia do Sul de instalar mísseis norte-americanos apontados ao Norte – apesar da oposição de Pequim– custou a Seul milhões, porque os turistas chineses desapareceram e os famosos artistas da K-pop coreana viram as portas da China fechadas.
Por outro lado, o governo chinês tem feito os possíveis para impedir que as reacções nacionalistas vão para além da Internet e dêem origem a movimentos de massas. Por um lado, desde o movimento de Tiananmen, em 1989, que as autoridades têm um medo desmedido de protestos de ruas. Há uns anos vi em Suzhou um manifestante solitário a ser atirado para dentro de um veículo por uma dezena de polícias, segundos depois de ter erguido um cartaz contra a mudança das regras que ditam que escola os seus filhos podiam frequentar.
Por outro lado, o Partido Comunista teme que agudizar as reacções nacionalistas possa ironicamente inflamar a tal ponto a opinião pública contra um inimigo externo que seja depois impossível à China resolver a disputa diplomática que deu origem ao problema. Isso explica, por exemplo, a forma cautelosa como Pequim respondeu à guerra comercial declarada pelo Presidente norte-americano Donald Trump. Afinal a China sabe bem que 众口铄金 (zhongkou shuojin), “a opinião pública tem a força suficiente para derreter metal”.
Antonio Graça de Abreu
Muito bem, Vitor Quintã, é isto mesmo.