A polémica naturalização do brasileiro Ai Kesen em nome do futebol chinês
No passado dia 10 a selecção nacional masculina de futebol da China defrontou as Maldivas, num encontro decisivo para a eventual qualificação para o Mundial de Futebol que se vai disputar no Qatar em 2020. Ainda assim, não foram as tácticas a dominar a preparação, mas sim a histórica estreia de Ai Kesen (艾克森). O avançado do Guangzhou Evergrande, que até há poucos meses se chamava Elkeson e era um cidadão brasileiro, tornou-se o primeiro jogador sem descendência chinesa a vestir a camisola da selecção.
No último ano a Associação Chinesa de Futebol (CFA, na sigla inglesa) já tinha começado a promover a naturalização de jogadores como Nico Yennaris (pai cipriota e mãe chinesa) e John Hou Sæter (mãe chinesa e pai norueguês). Mas a CFA teve de ir mais longe para garantir o regresso do lendário treinador italiano Marcello Lippi, apostando em estrangeiros que já vivem no país há pelo menos cinco anos – o mínimo exigido pela Federação Internacional de Futebol.
O novo presidente da CFA, Chen Xuyuan, garantiu que a decisão foi tomada apenas para garantir que a China consegue um lugar no Mundial, algo que não acontece há 17 anos. Um motivo de embaraço para um país que, segundo o Presidente Xi Jinping, quer tornar-se uma potência do futebol mundial até 2050. Ainda assim, Chen prometeu que a prioridade continua a ser na formação e que o número de estrangeiros naturalizados “será muito limitado”.
Chen admitiu que são pelo menos nove os estrangeiros que estão em processo de naturalização. Um grupo no qual, segundo a imprensa chinesa, se encontra o luso-cabo-verdiano Pedro Delgado, antigo jogador do Sporting. A maioria vem do Brasil, incluindo Alan, avançado do Tianjin Quanjian, o segundo a formalmente abdicar do passaporte brasileiro.
A preponderância de brasileiros levou mesmo um comentador desportivo chinês a dizer, em tom de troça, que “talvez a selecção nacional de futebol se torne a 57ª etnia minoritária chinesa, os Zhōng bā” (中巴), uma amálgama dos nomes chineses para China e Brasil.
Cantar o hino
Ai Kesen marcou os dois últimos golos na vitória fácil da China por 5-0 face às Maldivas mas para muitos adeptos chineses o momento de maior expectativa aconteceu ainda antes do apito inicial. Os olhos da nação estavam no estreante, a tentar descortinar se ele tinha ou não conseguido decorar a letra do hino.
Tal como em Portugal, o hino nacional chinês “A Marcha dos Voluntários” tem-se tornado uma prova de identidade e pertença na China. Não foi por acaso que o Partido Comunista pressionou o Governo de Hong Kong a propor uma lei que criminaliza o desrespeito pelo hino, que tem sido alvo de apupos generalizados antes dos jogos da selecção de futebol de Hong Kong.
Mesmo Nico Yennaris sentiu a necessidade de contratar um professor para aprender a cantar o hino chinês antes de se estrear pela selecção em Maio passado. “´É a minha responsabilidade”, disse o jogador à imprensa chinesa.
Aliás, já em Março a CFA tinha emitido directrizes a exigir que, além de conhecerem o hino, os jogadores naturalizados recebam “educação sobre a cultura tradicional chinesa, compreendam a história da China, aprendam a língua (…) e cultivem sentimentos patrióticos”.
A atenção dada a Ai Kesen na preparação da partida com as Maldivas – incluindo o destaque dado ao intérprete que a CFA pediu emprestado ao Shanghai SIPG, treinado pelo português Vítor Pereira – reflecte a desconfiança dos adeptos chineses. Isto apesar do jogador ter falado mandarim em público e ter escrito numa carta aberta: “Sou chinês (…) É esta a minha casa”.
Bodes expiatórios
A identidade chinesa está extraordinariamente enraizada num ideal de linhagem e genealogia da etnia Han. Por isso mesmo, a naturalização de Nico Yennaris e Tyias Browning não criou grande polémica, apesar de ambos terem nascido em Inglaterra e não saberem falar mandarim.
Pelo contrário, o alargamento da política de naturalização foi alvo de críticas, por exemplo, por parte de Hao Haidong. O melhor marcador de sempre da selecção da China disse que convocar jogadores “sem laços de sangue com o país” era “assustador”, uma posição apoiada por milhares de cibernautas chineses.
O debate acabou por envolver mesmo Figo que, numa visita à China, demonstrou apoio à nova política da CFA, lembrando o sucesso que luso-brasileiros como Deco e Pepe tinham tido na selecção das quinas. O antigo internacional português sublinhou ainda que os jogadores naturalizados já viviam há muitos anos no país.
A óbvia diferença é que, ao contrário de Portugal, onde a obtenção da nacionalidade por residência prolongada é vista como algo normal, Pequim apenas reconhece como cidadãos os descendentes de chineses. Uma concepção etnocultural de identidade que começa a ser difícil de manter num mundo globalizado. Aliás, segundo a imprensa um dos jogadores que a CFA naturalizou, Tyias Browning (cujo avô é chinês), continua num limbo, sem poder ser chamado à selecção chinesa, por não querer abdicar da nacionalidade britânica.
O desconforto em aceitar a naturalização de estrangeiros reflecte também o sentimento de inferioridade ainda enraizado na sociedade chinesa, após um século de humilhantes derrotas frente a forças externas, a começar pelas duas Guerras do Ópio entre 1839 e 1860. Um sentimento que, de forma paradoxal, alimenta o crescente nacionalismo chinês.
Há duas semanas um adepto do Beijing Guoan foi filmado a dizer “volta para o teu país” ao congolês Cedric Bakambu, protagonista da mais cara transferência de sempre de um jogador africano, após o congolês ter falhado várias oportunidades de golo num jogo da liga chinesa. Caso a selecção da China falhe novamente a qualificação para o Mundial, não seria surpresa ouvir este tipo de comentários. Ai Kesen e outros jogadores naturalizados serão os óbvios bodes expiatórios.