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política e sociedade

O fim das “ajudantes”

August 24, 2018

O fim das “ajudantes”

Para os ocidentais, Voldemort é o vilão da série de livros Harry Potter, escritos pela inglesa J.K. Rowling. Mas na China Voldemort ganhou um outro significado, descrevendo um grupo há muito negligenciado: as mulheres que têm um irmão mais novo, a quem – assim exigem as famílias – devem ajudar de forma abnegada, mesmo em prejuízo próprio. Esta expressão, como muitas outras na língua chinesa, nasceu de um trocadilho entre a tradução chinesa de Voldemort (伏地魔 “fúdìmó”, ou “o feiticeiro escondido no interior”) e 扶弟魔“fúdìmó”, que pode ser traduzido como “ajudante”.

Apesar da política do filho único ter sido imposta de forma rigorosa na China, a verdade é que sempre houve excepções previstas na lei, nomeadamente para etnias minoritárias e pessoas que vivam no campo. Ou seja, sempre houve “ajudantes”, mas este grupo só recentemente chegou à ribalta. No mês passado, a Tencent News, um dos mais populares portais noticiosos chineses, escolheu como destaque uma história sobre 11 irmãs que juntaram 320 mil renminbis (cerca de 40 mil euros) para ajudar a pagar o casamento do único irmão, que é também o benjamim da família. Uma pequena fortuna para uma aldeia rural como Qiaoshang, na província de Shanxi, no norte da China. Segundo a mesma notícia, o irmão, chamado Gao Haozhen, prometeu “trabalhar no duro no futuro, respeitar os meus pais e continuar a ser bom para as minhas irmãs”. Já as 11 irmãs garantiram que deram o dinheiro por vontade própria, sem qualquer pressão por parte dos pais.

Faz parte da tradição milenar chinesa que os irmãos mais velhos poupem algum dinheiro para ajudar os mais novos nas despesas mais importantes, como por exemplo o casamento. Mas há um provérbio chinês que diz que “o povo tem a visão aguçada”. Os cibernautas perceberam de imediato que a notícia não descrevia o comportamento normal de um grupo de irmãos chineses, mas sim as exigências colocadas às “ajudantes”. Como acreditar que não houve pressão familiar quando as irmãs tiveram de começar a trabalhar quando tinham sete anos e nenhuma pôde continuar a estudar além dos primeiros anos do liceu? Isto enquanto tinham de satisfazer todos os caprichos do irmão mais novo, o único que terminou o ensino secundário. Como se diz em chinês, “nem os fantasmas acreditam”. Por exemplo, os cibernautas sublinharam que o irmão nem sequer fingiu querer devolver mais tarde às irmãs o dinheiro gasto no casamento. “Se o tivesse feito, seria, sim, uma pessoa de respeito”, referia um comentário.

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Nascer torta

Outros comentários apontaram a diferença de 27 anos entre Haozhen e a irmã mais velha. Muitas das “ajudantes” são de facto mulheres nascidas de famílias numerosas que queriam a todo custo ter um filho varão. Aliás, a indiferença com que estas filhas são recebidas nota-se no nome que recebem – 招娣, “zhāo dì”, que quer dizer “atrair irmãos”, ou 来娣 “lái dì”, que significa “trazer irmãos”. A sua existência serve apenas de fonte de desilusão, porque nasceram com o sexo errado. São somente mais uma boca para alimentar, mais um corpo a exigir roupas, um investimento a fundo perdido, uma vez que um dia vão sair de casa para passar a “servir” os pais do marido.

Como tal, estas famílias nunca tiveram quaisquer ambições académicas para as filhas, preferindo até que elas abandonassem a escola para começar a trabalhar o mais cedo possível. Só assim poderiam poupar algum dinheiro, não para o seu próprio casamento, mas sim para ajudar o irmão mais novo, esse sim “o bem mais valioso” da família. Desde novas que lhes foi incutido que o significado principal da sua existência é ajudar o benjamim. Não admira que para muitas o sonho de infância não vá além de conseguir um emprego na função pública para que, com o apoio desse salário estável, o irmão mais novo possa, ele sim, ir à escola, comprar um computador, pagar as propinas e finalmente casar-se – no caso de Haozhen, porque engravidou a namorada.

Mesmo que algumas destas “ajudantes” cresçam e decidam ter a sua própria vida, não conseguem escapar à pressão dos pais. O que acontece, por exemplo, se o irmão mais novo quiser comprar uma casa, mas as irmãs recusarem dar dinheiro? Basta os pais exigirem às filhas uma ajuda financeira na velhice. Um pedido razoável num país onde a segurança social é incipiente e que, para a cultura chinesa, um filho ou filha não pode recusar, após ter beneficiado durante décadas dos sacrifícios que os pais fizeram. Naturalmente que essa ajuda financeira será eventualmente transferida para o irmão mais novo.

Alguns comentários também deram a entender que as “ajudantes” sofrem até de discriminação quando procuram um marido. “Tenho mais pena dos 11 cunhados que casaram com estas mulheres”, escreveu uma cibernauta. Aliás, no mundo rural chinês, onde há ainda muito o hábito de usar intermediárias para saber se há mulheres em idade de casar nas aldeias vizinhas, muitos homens rejeitam logo à partida aquelas com irmãos mais novos. Isto porque, mesmo depois de casarem e criarem a sua própria família, ser-lhes-á sempre exigido que continuem a ajudar o benjamim. Como se diz em chinês, nem que tenham de sugar o sangue do marido para dar como transfusão ao irmão mais novo.

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Palavras ocas

Ao contrário do que acontecia com as famílias numerosas há algumas décadas, o caso das 11 irmãs de Qiaoshang apareceu na Tencent News com um tom positivo. Para alguns cibernautas, é um sinal de como os meios de comunicação social estão a ser usados pelo governo chinês para encorajar a população a ter mais crianças. Após 30 anos de política do filho único, o país começa a temer o impacto futuro de uma sociedade envelhecida. As contribuições para a segurança social estão já muito longe de cobrir as pensões de reforma, o que levou já à abolição, ainda que disfarçada, das restrições ao planeamento familiar. Acabou a época em que as autoridades prometiam apoiar os idosos cujos filhos únicos não tinham meios financeiros.

Mas a propaganda deixou marcas, nomeadamente normalizando a imagem da família com apenas três pessoas e apagando a tradição milenar da família alargada chinesa, quase do tamanho de um clã, a viver debaixo do mesmo tecto. Por isso, o governo apressa-se a elogiar as famílias numerosas, num processo que não é de agora. Já no ano passado, a Gala do Ano Novo Lunar da televisão estatal chinesa CCTV – o programa mais visto no planeta  – convidou uma família com 10 filhas e elogiou a mãe. Ninguém mencionou, obviamente, que, dois anos antes, ter uma tão vasta prole era ainda ilegal para a maioria da população.

É questionável, no entanto, qual será o resultado da propaganda governamental. Na China de hoje criar uma criança tornou-se uma ambição muito cara. A competição feroz começa logo no acesso aos melhores infantários, obrigando os pais a gastar cada vez mais com a educação. Por outro lado, a lei não apoia nem protege as mulheres que decidem ter filhos. Para muitas, a única solução acaba por ser demitir-se e ficar em casa. Também os espaços públicos não estão preparados, nomeadamente com salas de amamentação, para ajudar as mães.

O país quer que as mulheres tenham mais filhos para aliviar a pressão demográfica que paira sobre o futuro da China. Mas a nova geração conhece na pele a discriminação que as mulheres chinesas sofrem e responde com ironia à utilização dos meios estatais de comunicação social para “empurrar” as mulheres, nomeadamente aquelas com qualificação superior, para que abandonem as ambições profissionais e voltem para casa para tomar conta dos filhos. A nova geração não vai em ilusões e sabe bem que as palavras de apelo ao sacrifício para o bem dos outros, para o bem da pátria, são ocas. Muitos não querem sequer casar, muito menos ter filhos.

Após muitos e muitos comentários a ridicularizar a notícia das 11 irmãs, o próprio Tencent News percebeu que tinha metido o pé na poça e alterou a história para um tom mais neutral. Mas há situações, como no caso das “ajudantes”, em que ser equilibrado não chega. Apesar das muitas críticas que enfrentou, a antiga política do filho único prometeu igualdade entre filhos e filhas e de facto hoje em dia as mulheres conseguiram direitos e posições que antigamente eram impensáveis. Sopram ventos de mudança na China.

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