Coronavírus: A fúria e o medo
“Nós sabemos que eles estão a mentir. Eles sabem que estão a mentir. Eles sabem que nós sabemos que eles estão a mentir. Nós também sabemos que eles sabem que nós sabemos que eles estão a mentir… Ainda assim, eles continuam a mentir”, escreveu um cibernauta a 7 de Fevereiro no Weibo, o equivalente chinês do Twitter.
O alvo era o Partido Comunista e o motivo era a morte de Li Wenliang, uma das milhares de vítimas do novo coronavírus de Wuhan. Mas a morte do médico afectou o público chinês mais do que qualquer outra.
Algo que seria de esperar, tendo em conta que Li morreu no cumprimento do dever, após ter observado no Hospital Central de Wuhan um paciente com glaucoma, que mais tarde se descobriu ter o coronavírus, entretanto denominado de Covid-19.
No entanto, a esmagadora maioria dos 800 milhões de comentários e publicações que mencionaram o assunto no Weibo não expressaram uma natural mágoa pelo sacrifício do oftalmologista de 34 anos. Em vez disso, foi a fúria que assinalou uma morte trágica, anunciada desde o início do surto de coronavírus.
A 30 de Dezembro, muito antes da nova estirpe fazer manchetes em todo o mundo, Li Wenliang publicou uma mensagem num grupo a aconselhar os seus colegas médicos a usar material de protecção. Isto após ele ter identificado sete casos semelhantes à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla inglesa), que matou quase 800 pessoas em 2003.
Quatro dias mais tarde, Li foi chamado à esquadra da polícia, que o acusou de “fazer falsos comentários” que tinham “perturbado de forma grave a ordem social”. A televisão estatal CCTV anunciou mais tarde que oito pessoas, todas elas membros do grupo, estavam a ser investigadas por “espalharem rumores”.
Quando a real dimensão do surto se tornou evidente, a polícia pediu desculpas a Li. Mas o mal já estava feito.
Os média estatais do regime chinês só conseguiram piorar a situação. O Diário do Povo começou por anunciar a morte do oftalmologista, que foi logo de seguida negada pelo Global Times. Só horas mais tarde é que a morte foi finalmente confirmada.
Gestão da multidão
“Vou continuar a publicar para te obrigar a eliminares até estares morto de cansaço”, escreveu um cibernauta no WeChat, o equivalente chinês do Facebook. E quase resultou. Durante quase um dia inteiro, foi difícil perceber se a máquina estatal de censura estava simplesmente sobrecarregada face a tantos comentários ou se o Partido Comunista chinês estava intencionalmente a deixar a população descarregar a sua fúria.
Eventualmente os censores conseguiram dar conta do recado, apagando da Internet chinesa quase todos os comentários críticos para com o regime. Mas as autoridades não se ficaram por aí na tentativa de conter a indignação dos cibernautas.
Já em Janeiro o Supremo Tribunal Popular chinês tinha criticado a polícia de Wuhan, defendendo que o surto poderia não ter atingido tal dimensão “se na altura o público tivesse acreditado nestes ‘rumores’”.
E após a morte de Li, a Comissão Central de Inspecção Disciplinar, o principal órgão chinês de combate à corrupção, anunciou o envio de uma equipa a Wuhan, capital da província de Hubei, para “proceder a uma investigação exaustiva”.
A tentativa de atirar com as responsabilidades para as autoridades locais continuou com o anúncio, a 11 de Fevereiro, da “remoção” de centenas de dirigentes de Hubei, a começar pelo líder da Comissão provincial de Saúde.
O Partido Comunista chinês é notável no sucesso que tem tido na manutenção de uma fachada de consenso e unanimidade. Mas a fachada tinha começado a rachar logo a 27 de Janeiro, quando numa entrevista à CCTV o presidente da câmara municipal de Wuhan, Zhou Xianwang, disse que não tinha avisado a população mais cedo porque não tinha “autorização superior” – ou seja, de Pequim.
Liberdade sufocada
Após lamentar a morte de Li Wenliang, o embaixador chinês nos Estados Unidos, Cui Tiankai, acrescentou no Twitter – banido na China continental – que o país “encoraja as pessoas a dizer a verdade e a enfrentar os desafios”.
Mas mesmo a revista chinesa Caixin discordou, defendendo num editorial a criação de uma lei para proteger os delatores, algo que “requer uma sociedade aberta. Tensão, opressão e rigidez não vão encorajar os denunciantes quando são precisos, em tempos de crise”.
Um mero reflexo, ainda que opinativo, da extraordinária cobertura noticiosa que muita da imprensa privada chinesa tem feito do surto de coronavírus, apesar das enormes limitações que os jornalistas enfrentam.
Foi Xu Zhangrun, professor de Direito – já suspenso pela Universidade Tsinghua por criticar o fim do limite de mandatos para o presidente chinês, Xi Jinping – a estabelecer uma ligação directa entre a repressão da sociedade civil e da liberdade de expressão e a incapacidade de lidar com o surto numa fase mais precoce. “Todas as oportunidades para uma discussão pública foram sufocadas e com elas o mecanismo original de alerta da sociedade”, lamentou Xu, num ensaio publicado na Internet.
Uma opinião partilhada pelos cibernautas chineses, que tinham já tornado a expressão “Queremos liberdade de expressão” a mais popular no Weibo, com mais de 2 milhões de visualizações. Isto até ser obviamente censurada.
“Durante 30 anos os chineses foram convencidos a renunciar à sua liberdade em troca de segurança e agora tornam-se presas de uma crise de saúde pública perante a qual estão menos seguros do que nunca”, denuncia uma carta aberta, assinada por um grupo de nove intelectuais chineses, que inclui Xu Zhangrun.
O documento, enviado à Assembleia Popular Nacional, apela ao parlamento chinês para proteger a liberdade de imprensa, um direito incluído na constituição do país. A carta pede ainda que o dia 6 de Fevereiro seja declarado Dia Nacional da Liberdade de Expressão, em honra de Li Wenliang.
Gota de água
Xu Zhangrun foi ainda mais longe no seu ensaio, onde defendeu que “a fúria das pessoas irrompeu como um vulcão e as pessoas furiosas não têm mais medo”. “A derrota do Partido Comunista Chinês está à vista e a contagem decrescente começou”, acrescentou o académico.
É fácil cair na tentação de acreditar que a incompetência demonstrada pelo regime durante o surto – algo que seria mais do que suficiente para fazer cair qualquer governo eleito de forma democrática – será a gota de água para a população chinesa.
“A verdade será sempre tratada como um rumor. (…) O que mais têm a esconder?” perguntou ao Governo um cibernauta. A desconfiança do público só cresceu quando a nova liderança da Comissão de Saúde de Hubei reconheceu na quinta-feira passada que o número de infectados pelo coronavírus era quase 10 vezes superior ao até então noticiado.
“Não esqueçam como se sentem agora. Não esqueçam esta fúria. Não podemos permitir que isto volte a acontecer”, apelou um cibernauta no Weibo. Afinal, este ciclo de indignação e apaziguamento já aconteceu em vários outros escândalos, incluindo o leite contaminado com melamina (um tipo de plástico) que em 2008 envenenou 54 mil bebés, seis dos quais morreram, e as vacinas de “qualidade suspeita” detectadas em 2018.
O Partido Comunista tem sobrevivido a todos os golpes, apoiando-se no controlo dos média e das redes sociais – que seriam essenciais para qualquer protesto organizado – e na ausência de uma oposição minimamente definida.
Alguns cibernautas acreditam que este último escândalo “é diferente do passado, uma vez que toda a gente está confinada às suas casas e agarrada aos telemóveis, o que intensifica a memória”. Mas a própria frase suscita a questão: será que a fúria se vai desvanecer assim que a quarentena decretada em toda a China seja levantada?
“Quem carrega a lenha para nos aquecer não deve ser deixado a congelar numa tempestade”, diz um ditado chinês. É cedo demais para se desta vez o sacrifício de Li Wenliang não será também vítima do frio.
Fotografia de destaque: Carlos Gonçalves