“Veremos muitos conflitos nos próximos tempos”
Antony Dapiran, jurista, escritor e comentador político há muito radicado em Hong Kong, publicou recentemente “City on Fire”, sobre os protestos que varreram a cidade nos últimos tempos. Em entrevista ao Extramuros, fala da proibição das vigílias por Tiananmen, da lei de segurança nacional e de outros assuntos que marcam a agenda da região. O autor prevê que os próximos meses sejam “desafiantes” e considera Carrie Lam e o governo de Hong Kong “os únicos responsáveis” pela escalada de violência.
Como vê a decisão das autoridades de Hong Kong e Macau de não permitirem as habituais vigílias que assinalam o massacre da Praça de Tiananmen, utilizando a pandemia de Covid-19 e as restrições de saúde pública como justificação?
O uso governamental do coronavírus como desculpa para cancelar as vigílias de Tiananmen não é surpreendente. Se por um lado as pessoas podem considerar que esta medida é uma precaução que mostra sensibilidade tendo em conta o vírus, há uma clara inconsistência na abordagem do Governo de Hong Kong, que permite grandes ajuntamentos em espaços fechados ao mesmo tempo que bane conspicuamente este evento. A questão é por quanto tempo pode o governo manter estas proibições: tentarão mantê-las até aos importantes aniversários dos protestos do ano passado, bem como até à marcha anual de protesto de 1 de Julho? O tempo o dirá.
Como julga que será este 4 de Junho em Hong Kong? Espera um dia calmo ou tenso na cidade?
Espero que seja um dia relativamente calmo. No entanto, a polícia intervirá se alguém tentar juntar-se em Victoria Park. Há também planos para que as pessoas acendam velas nas [janelas de] suas casas por toda a cidade. Será interessante ver a amplitude da participação neste evento.
O seu livro mais recente, “City on Fire”, regista a história do Movimento dos Guarda-Chuva e este mais recente movimento contestatário. Quando o lançou, há alguns meses, podia supor que algo como a nova lei de segurança nacional e o modo como o Governo Central decidiu aplicá-la em Hong Kong pudesse acontecer agora? Que leitura faz deste caso, também do ponto de vista legal?
Certamente não esperava que os acontecimentos se desenrolassem deste modo, nem esperava que o Governo Central interviesse da maneira que interveio. Claramente os tumultos do último ano – e em particular os vários pedidos de “independência” por uma pequena minoria – provocaram Pequim a agir de um modo que sente ser decisivo e vigoroso. A preocupação é que o modo como decidiram intervir, formulando a sua própria lei e impondo-a a Hong Kong desde Pequim, não parece consistente com a Lei Básica e representa uma ameaça séria à confiança no estado de direito de Hong Kong. É um desenvolvimento desastroso para Hong Kong.
Chegamos aqui depois de quase um ano de protestos. Se tivesse de descrever brevemente a alguém que soubesse pouco ou nada sobre o porquê das manifestações em Hong Kong, como o faria? Talvez seja uma forma de perceber como olha para este momento histórico.
Os protestos foram inicialmente contra uma nova proposta de lei que iria permitir a extradição de suspeitos de crimes para que pudessem ser julgados na China Continental. A proposta de lei acabou por ser retirada, mas entretanto os manifestantes expandiram as suas reivindicações que passaram a incluir a investigação da violência policial e mais democracia em Hong Kong (em particular sufrágio universal para a eleição do chefe do executivo e de todo o conselho legislativo). Mas, no seu âmago, todo este movimento contestatário é, a meu ver, sobre a ansiedade devido à crescente influência de Pequim em Hong Kong, e o falhanço do governo de Hong Kong para governar de modo apropriado e tendo em vista os interesses da população.
Ao ler “City on Fire” fica-se com a sensação de que deve ser um exercício desafiante escrever sobre acontecimentos tão recentes em forma de livro, uma vez que são ainda tão próximos e não passaram pelo crivo do tempo. Como lida com isto?
Concordo totalmente, o meu livro é muito um registo imediato e uma resposta aos acontecimentos do último ano, uma espécie de “primeiro rascunho da história” se quisermos. Não tem o benefício do tempo e do espaço em relação aos eventos para fazer uma avaliação fria e sóbria. No entanto, penso que oferece o benefício de colocar os eventos do ano passado num contexto histórico e cultural, e tenta dar um olhar mais profundo de certos aspectos dos protestos para entender por que motivo as coisas podem ter acontecido da maneira que aconteceram e o que isso pode significar. Mas deixo o julgamento da história para outros fazerem mais tarde.
Esteve na linha de frente muitas vezes durante os protestos. Olhando para trás – e também para as últimas semanas em Hong Kong – como avalia o uso da força por parte da polícia de Hong Kong e dos manifestantes?
O nível de violência de ambos os lados foi além de tudo o que Hong Kong viu desde os distúrbios da Revolução Cultural de 1967 e houve obviamente casos de um nível inaceitável de violência de ambos os lados. Mas, como exploro em mais detalhes no meu livro, há questões complexas a serem consideradas aqui, incluindo como se define e caracteriza a “violência”, o papel da violência estrutural / sistémica e o papel das assimetrias de poder. Houve também um bom grau de desinformação explorado por ambos os lados. Acho que alguém que queira discutir o papel da violência nos protestos precisa de passar algum tempo a entender as complexidades e subtilezas aqui envolvidas, ao invés de ser redutor.
Os dois lados foram igualmente responsáveis pela escalada da violência ou um deles carrega a maior parte da responsabilidade?
Na minha opinião, Carrie Lam e o governo de Hong Kong são os únicos responsáveis. Isto foi um fracasso da liderança. O governo provocou o problema em primeiro lugar com o projecto de lei de extradição mal concebido. O governo recusou interagir com os manifestantes e com a comunidade em geral, procurou tratar um problema político como se fosse puramente um problema de “lei e ordem”. O governo atirou a polícia para a linha de frente como único interface entre a população e o executivo – uma posição em que a polícia nunca deveria ter sido colocada – apenas com as ferramentas de uma força policial para lidar com o problema. A violência que surgiu foi unicamente o resultado desta dinâmica criada pelo governo, que fez um profundo mau serviço a todos: aos manifestantes, à sua própria força policial e mais amplamente à comunidade de Hong Kong.
Falemos sobre supostas influências estrangeiras. Alguns comentadores continuam a enfatizar a existência de outros interesses e nações por trás dos protestos. O que acha disto?
Ao cobrir os protestos nas ruas todas as semanas durante sete meses, não vi nenhuma prova disso. Qualquer pessoa que realmente tenha passado algum tempo entre os manifestantes pôde ver com os seus próprios olhos a natureza orgânica destes protestos: os protestos e as tácticas cresciam diante dos nossos olhos, como um organismo vivo. Não havia nada neles que fosse organizado externamente. A acusação de que elementos estrangeiros estavam de alguma forma a instigar, organizar, treinar ou financiar os protestos é francamente um insulto ao povo de Hong Kong: as pessoas não são suficientemente inteligentes para se organizarem? Elas são tão cobardes que por princípio não fazem nada sozinhas? Agora, é claro, os governos estrangeiros simpatizaram naturalmente com a causa dos manifestantes e deram apoio moral. Mas, além disso, foi tudo feito pelas pessoas de Hong Kong.
É justo dizer que há um grande grupo de manifestantes que apoiam uma hipotética independência de Hong Kong ou, pelo que sabe, afirmar algo deste género é apenas querer rotular os manifestantes como extremistas?
Não diria que existe um “grande” grupo, mas certamente há uma pequena fracção do movimento de manifestantes que fala sobre a “independência” de Hong Kong. No entanto, faço uma advertência quanto à interpretação muito literal destes pedidos [de independência]. O que sinto é que, pelo menos para algumas das pessoas que discutem a ideia da independência de Hong Kong, não o dizem literalmente, mas antes como uma provocação, um ponto retórico, destinado a defender a sua posição de pedido de maior autonomia para Hong Kong. Claro que, em vez de provocar uma discussão e um compromisso, isto acabou por provocar uma reacção extrema de Pequim.
Voltando às notícias recentes, os Estados Unidos da América (EUA) parecem decididos a retirar a Hong Kong o seu estatuto especial. Quais seriam as implicações para a cidade ?
De momento temos apenas declarações muito gerais dos EUA e ainda não uma imagem clara de que acções pretendem tomar. Pode ser que os EUA direccionem as suas medidas de um modo que tenha apenas um efeito limitado sobre as pessoas e empresas comuns de Hong Kong (por exemplo, sanções contra líderes governamentais ou restrições à exportação de tecnologias de dupla utilização para Hong Kong). No entanto, se os EUA chegarem ao ponto de retirar o estatuto de Hong Kong enquanto território separado do resto da China em termos de alfândega e de vistos, isso terá não apenas um impacto adverso em Hong Kong, mas também será contraproducente do ponto de vista dos EUA, pressionando Hong Kong a depender ainda mais da China. Isso significaria que Hong Kong a longo prazo tornar-se-ia uma cidade menos cosmopolita, menos internacional, seria uma perda para todos.
Como vê o evoluir da situação nos próximos meses?
Penso que serão meses muito desafiantes em Hong Kong, antecedendo as eleições para o conselho legislativo em Setembro. Hong Kong estará sob três forças diferentes e poderosas: a determinação de Pequim em controlar a cidade e garantir que os resultados das eleições sejam do seu agrado; os democratas de Hong Kong, procurando manter vivo o espírito contestatário e tentando deixar a sua marca nas eleições; e, é claro, Hong Kong está no meio das correntes tensões entre a China e os EUA. Por isso, temo que veremos muitos conflitos nos próximos tempos.
À distância, como observador, como vê Macau actualmente?
Macau é um caso muito interessante: é claro que é frequentemente comparada a Hong Kong como sendo a irmã mais nova e “obediente” entre as duas regiões administrativas especiais, mas os dois lugares não são realmente comparáveis, são tão diferentes em muitos aspectos: do seu tamanho global à economia, à história colonial. Macau certamente goza de uma posição única na China, e mais amplamente na Ásia, e a sua combinação de herança europeia e de uma forte cultura local tornam-na um lugar fascinante. Penso que, como Hong Kong, a prosperidade futura de Macau depende de continuar a cultivar a sua própria identidade.
Numa nota mais pessoal, morando em Hong Kong há tanto tempo, falando mandarim e estando totalmente integrado, a sua relação com a vida na cidade é hoje diferente daquilo que era há alguns anos?
Certamente Hong Kong não é um lugar fácil para alguém se sentir “em casa”, e é justo dizer que demorei muito tempo para sentir uma afeição genuína pela cidade. Mas em particular os eventos desencadeados a partir do Movimento dos Guarda-Chuva em 2014 – incluindo os desenvolvimentos culturais e políticos – ajudaram-me a apreciar as muitas camadas e nuances desta cidade e fizeram-me sentir mais envolvido e mais ligado a este lugar.