O “ella” nos caracteres de origem chinesa
A “problemática” dos pronomes pessoais de género nas línguas europeias tem gerado muitas discussões entre a comunidade LGBT, especialmente aqueles que provêm dos países anglófonos. Por sua vez, os chineses também criaram um pronome de género neutro, o “TA”. Sim, vi este “carácter” composto pela letra maiúscula T e pela letra maiúscula A, na China, durante a minha estadia de cinco meses no ano passado no país. Recordo, entretanto, como os grandes autores chineses dos primeiros anos do período republicano lutaram tanto para ser criado um novo carácter em mandarim que, à semelhança das línguas ocidentais, fosse equivalente ao pronome pessoal feminino.
Quando (re)comecei a escrever sobre este “ela” chinês, (re)descobri um texto sobre o mesmo assunto que acabei de escrever num dia de verão do ano passado. Agora, muitos meses depois, e embora a minha cabeça/coração já estivessem a viver uma outra vida, pensei que seria interessante traduzir/reescrever esse texto a partir do que tinha escrito em francês. Faço-o agora:
Escrevi neste título a palavra “ella” com dois “l”, porque esta remete para a antiga ortografia portuguesa e porque isso me dá a sensação de maior proximidade com o tempo em que houve uma mistura de culturas – voluntária, mas também forçada – na China, há um século.
Um século depois, na minha vida quotidiana com a Mathilde, que acontece maioritariamente em francês, eu não me canso de repetir a mesma brincadeira de sempre e dizer que falo um “crioulo” francês. Isto porque cometo sempre erros como estes: confundo o “elle” (ela) francês e o “elle” (ele) português (mais uma vez na antiga ortografia), e sobretudo tendo o pronome de género neutro “佢” (pronunciado koi) em cantonense na cabeça/coração.
Trata-se de um pronome pessoal que é “livre” num duplo sentido: em primeiro lugar, o cantonense falado não sofreu uma mudança tão radical como aquela que sofreu o mandarim, quando se procurou inventar um “ella” que não existia; em segundo lugar, os pronomes pessoais em cantonense, como nas outras variantes da língua sínica, não têm declinações gramaticais.
O segundo ponto, ainda antes de começar a discussão sobre o pronome pessoal português “ella”: constato filosoficamente que a expressão “thinking out of the box (pensar fora da caixa) não é nada mais do que abrir uma matriosca infinita, como compreendi na sequência de uma conversa que tive com uma antropóloga filipina que me sugeriu, há alguns anos, abrir a minha própria caixa. Isto aconteceu numa altura em que eu tentava escapar ao meu próprio “sinocentrismo”, reduzido a um “cantonocentrismo” e extensível a um “oriental-extremo-centrismo.” Durante um ano, frequentei intensivamente cursos de japonês e coreano em universidades de Berlim, onde também recomecei a aprender vietnamita. Foi esta intensidade que me deu estrutura psicológica para me poder reposicionar num contexto mais global, embora tenha, ao mesmo tempo, reforçado o meu antigo “sinocentrismo.”
Entretanto, antes disso, há cerca de seis anos, quando vivia em Bruxelas, tive uma conversa com uma feminista belga. Esta conversa volta sempre à minha cabeça/coração, quando falo de pronomes pessoais em línguas diferentes. Naquele intercâmbio, eu questionei se o facto de os pronomes pessoais chineses, na maioria das suas variantes como nas muitas línguas asiáticas, não apresentarem distinção de género, poderia oferecer uma inspiração filosófica para repensar a feminidade nas línguas europeias. Esta feminista, Klara Lebrun defendeu nesse diálogo a ideia da “inexistência da feminidade” em muitas destas gramáticas asiáticas.
Mas agora, numa altura em que o tema de feminismo está cada vez mais presente na minha vida quotidiana, é claro para mim que me arrisco não ser compreendido ao traduzir culturas que possuam, tenham inventado ou adoptado (ou não) um “ela” como pronome pessoal.
Além disso, o facto de, tanto em cantonense como noutros idiomas sínicos – incluindo o antigo dialecto de Pequim – não haver diferença entre um “elle” e um “ella,” desperta em mim uma curiosidade que tem uma única origem: o “ella” chinês só é válido visualmente num mandarim escrito – aquele que adoramos designar de “chinês”. Foi uma invenção feita pelos grandes intelectuais republicanos chineses para definir a “mulher chinesa” ou o “ser feminino chinês,” como urgência intelectual na salvaguarda e na criação, ao mesmo tempo, de uma moderna nação chinesa. Criou-se então o carácter “她.” Hoje este carácter é pronunciado exactamente como o “ele” (他), também “TA,” mas até então era um carácter raramente usado que não tinha nada a ver com o ainda inexistente “ella” da concepção europeia nas línguas do Império Celeste. Na História, teve diferentes pronúncias nas várias variantes das línguas sínicas.
É de notar que no contexto do mundo confucionista, que o mandarim moderno padronizado é a única língua para a qual foi criado esse novo carácter. O coreano, o japonês e o vietnamita também passaram por um processo semelhante de criação de um “ella”, como forma de imitação das línguas europeias, mas em vez de ser criado um novo carácter, “traduziram” a ideia, para algo como “aquele ser feminino” em japonês e em coreano, enquanto o vietnamita conserva uma hierarquia mais complexa na sua criação de vários “elas”, conjugando em função da idade ou estatuto social de uma mulher. Por isso, eis aqui um exemplo para demonstrar como foi radical a vontade dos grandes autores chineses de ocidentalizar o país. É em contrapartida interessante observar que hoje, na variante do mandarim da Formosa, o pronome “他” é também usado como neutro em termos de género numa escrita informal.
Como sabemos, os caracteres chineses são passíveis de serem desconstruídos: o carácter “她” é composto pelo radical “女” para marcar a feminidade e atribuir significados relacionados à mulher, enquanto “也” parece-me algo obscuro. “也,” secundo o primeiro dicionário chinês (cujo título foi traduzido em português como Discurso sobre a Prosa Refinada para Explicar Ideogramas por Giorgio Sinedino), significaria o órgão sexual feminino, mas outras teorias mais recentes apoiam que o carácter visualiza o ar saindo da boca, sobretudo quando esta é também uma partícula que marca o fim de um dito em chinês clássico. Mas aqui, no carácter “她”, deve ser tido em conta como um marcador de pronúncia. Para quem conhece o mandarim padrão moderno, faz todo o sentido, quando se diz que “她” foi uma rara variante de outro carácter “姐” (jiě em mandarim), que significa “irmã mais velha”: “也” (yě) e “姐” (jiě) têm uma pronúncia semelhante. Este carácter também tinha vários outros significados nas diversas variações históricas do chinês, mas nenhum destes significava “ella,” como era evidente.
O escritor e linguista chinês Fu Liu (1891-1934, Liu o seu apelido), que traduziu “A Dama das Camélias” para chinês, foi considerada a primeira pessoa a propor pela primeira vez a utilização do carácter “她”, para criar uma equivalência do “ella” em mandarim, cuja versão escrita acabou por substituir o chinês clássico na época. Se esta foi uma nova invenção coincidente com o antiquíssimo e já então existente carácter ou não ainda está por investigar, mas este carácter está fixado hoje em dia na língua chinesa-mandarim oficial como a única maneira legítima de dizer “ella” nesta língua, e criou um espaço intelectual para o conceito da “mulher” na China moderna.
No entanto, esta imitação do ocidente, que poderia parecer “feminist friendly”, foi rejeitada por parte das mulheres chinesas na época da sua criação, uma vez que o “ella” chinês (她) era composto pelo radical como indicador da sua feminidade e por um marcador de pronúncia. Em contrapartida, o “elle” (他) tinha o radical de 人 (ser humano) e o mesmo marcador de pronúncia. É natural que as intelectuais da época ficassem descontentes. A saber, o carácter “人”, que merece uma explicação que poderia dar um livro, era “desenhado” na escrita mais antiga como um simples “ser humano,” sem género específico, embora com uma outra complexidade em termos de usos e significados ao longo da história. Por isso, parece-me que a criação de um “ella” por um homem de género e sexo masculinos que não tinha isto em consideração pode não fazer sentido: “Porque é que não foi criado mais um carácter para indicar a masculinidade de um ‘elle’ e assim ganhar-se um equilíbrio com o novo criado ‘ela’?”
Foto de destaque: Carlos Gonçalves