O adeus ao refúgio dos magnatas e o desaparecimento de Xiao Jianhua
O regulador bancário chinês assumiu o controlo de várias empresas lideradas por um magnata que desapareceu após ser raptado pela polícia em 2017. Um caso que reflecte o papel das altas esferas do Partido Comunista na economia privada e o fim de Hong Kong como refúgio dos chineses ricos.
“Quanta troca de dinheiro e poder estará por detrás disso?” escreveu a Tomorrow Holdings na página oficial do conglomerado chinês na rede social WeChat, a 18 de Julho. Na publicação, o grupo acusava os reguladores financeiros chineses de “forçarem ‘takeovers’” de empresas para se poderem tornar executivos e assim “adiar a reforma”.
As insinuações surgiram um dia depois do regulador, a Comissão Reguladora de Bancos e Seguros da China, ter assumido o controlo, por um ano, de nove empresas da Tomorrow Holdings, um grupo que há três anos e meio enfrenta graves dificuldades financeiras.
O regulador alegou que a Tomorrow Holdings violou a lei, algo negado pelo conglomerado, que defendeu ainda que nenhuma das companhias – cujo valor total ultrapassa os 1,2 biliões de yuan (149 mil milhões de euros), segundo o diário chinês Caixin – tinha problemas de liquidez.
O grupo disse que, desde que as dificuldades financeiras começaram, já vendeu activos na China e no estrangeiro no valor de milhares de milhões de yuan e que estava a negociar a venda de mais, algo a que o ‘takeover’ do regulador pôs cobro. “Qual foi o sentido disso?” pergunta a publicação.
As críticas foram rapidamente apagadas do WeChat, que justificou a decisão dizendo que o conteúdo “viola os regulamentos” da rede social chinesa: a resposta padrão em casos de censura política.
Seria fácil desvalorizar a publicação como as queixas de mais um conglomerado chinês que tentou crescer demasiado depressa e acabou por cair por terra, como foi o caso do Anbang Insurance Group e do HNA, que chegou a ser accionista da companhia aérea de bandeira portuguesa TAP.
Porém, os contornos deste caso sublinham o extraordinário envolvimento na economia privada das elites do Partido Comunista Chinês, as mesmas pessoas que regulam o sistema capitalista do país.
Muito se critica no Ocidente as benesses concedidas às empresas estatais mas a verdade é que muitos dos “príncipes” comunistas – descendentes de dirigentes revolucionários – têm aproveitado os seus privilégios políticos para enriquecer com o desenvolvimento de grandes grupos privados, vistos como símbolos do que o Presidente chinês Xi Jinping chamou de “rejuvenescimento nacional”.
Segundo a única edição da revista chinesa Caijing a não conseguir escapar à censura, já em 2007 o presidente da Tomorrow Holdings, Xiao Jianhua, tinha ajudado o filho de Zeng Qinghong, então membro do poderoso Politburo, a comprar o distribuidor de electricidade da província de Shandong a um preço de saldo.
Em 2013, revelou o jornal Financial Times, Xiao Jianhua ajudou a irmã e o cunhado de Xi Jinping a livrar-se de acções num fundo de investimento detido maioritariamente pelo Estado chinês. Isto após a agência noticiosa Bloomberg ter publicado uma investigação revelando as fortunas acumuladas pelas famílias dos líderes políticos chineses.
“Os contornos deste caso sublinham o extraordinário envolvimento na economia privada das elites do Partido Comunista Chinês, as mesmas pessoas que regulam o sistema capitalista do país”
Longe da vista
Ligações poderosas que não impediram que Xiao Jianhua desaparecesse em 2017, após ter sido levado de um hotel de Hong Kong por um grupo de homens, alegadamente agentes da polícia da China continental.
Apesar de na altura a Tomorrow Holdings ter publicado nas redes sociais duas notas – depois eliminadas – onde Xiao Jianhua negava o rapto e dizia estar no estrangeiro a recuperar de uma doença, a polícia de Hong Kong confirmou que existe o registo de que o empresário terá atravessado a fronteira com a cidade de Shenzhen.
Os raptos de cinco funcionários da Causeway Bay Books, editora de Hong Kong especializada em livros sobre os ilícitos dos líderes comunistas, já tinham em 2015 chocado a região, cuja autonomia estava prometida até 2047.
Mas foi o caso de Xiao Jianhua que provou aos empresários chineses que Hong Kong já não era mais um refúgio seguro para quem caía em desgraça na China continental.
Aliás, após a aprovação por Pequim da lei de segurança nacional para Hong Kong, no mês passado, o desaparecimento do magnata seria actualmente perfeitamente legal.
A polémica lei prevê que os crimes como secessão, subversão e terrorismo podem ser punidos com a pena máxima: prisão perpétua. Pequim estabeleceu um gabinete de segurança em Hong Kong, que pode enviar casos para a China continental para aí serem julgados.
A imprensa económica internacional já analisou a fundo – muitas vezes de forma apocalíptica – como a nova lei de segurança nacional pode assustar as multinacionais e colocar em perigo o papel de Hong Kong como centro financeiro mundial.
Mas serão possivelmente os investidores chineses quem mais sairão prejudicados. Pelo menos até há poucos anos, Hong Kong era de facto um local seguro para colocar o dinheiro e activos longe das represálias do Partido Comunista, onde o Estado de direito e o sistema judicial funcionavam.
Resta saber se a nova lei será suficiente para que os grupos económicos privados chineses procurem outras formas – e outras cidades, como Singapura – para aproveitar as oportunidades de investimento exterior criadas pela pandemia da Covid-19.
Afinal, hoje em dia, bastaria ao Partido Comunista acusar Xiao Jianhua de “conluio com forças externas para colocar em perigo a segurança nacional em Hong Kong” para o poder prender e levar para o continente sem precisar de o colocar numa cadeira de rodas, com a cabeça coberta.
Curiosamente, após ter desaparecido, o empresário negou (nas tais notas publicadas nas redes sociais que entretanto foram eliminadas) ter feito seja o que fosse para prejudicar o regime chinês ou ter trabalhado com “forças ou organizações de oposição”. Nunca mais foi visto.
Foto de destaque: Hong Kong/ DEPOSITPHOTOS