O caos visto de longe
Joe Biden toma hoje posse como presidente dos Estados Unidos, após uma eleição polarizada que alimentou na China uma narrativa dos Estados Unidos como um país em declínio. Já em Hong Kong e Taiwan, a derrota de Donald Trump, visto como um adversário do regime comunista, foi recebida com desânimo.
“Que visão memorável”, escreveram muitos cibernautas chineses após o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos a 6 de Janeiro. Uma referência sarcástica aos elogios feitos pela líder democrata Nancy Pelosi aos protestos pró-democracia em Hong Kong, em 2019. Curiosamente, no início do seu mandato, Trump tinha muitos adeptos nas redes sociais chinesas por ser “um milionário, um magnata do imobiliário, algo que dá um estatuto elevado na China”, disse ao EXTRAMUROS Rana Mitter.
A linguagem “agressiva” e a falta de instintos democráticos eram também vistas com bons olhos, explica este professor de política chinesa na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Para os cibernautas chineses, a presidência de Trump “reforçou o que eles já tinham ouvido sobre a política norte-americana: é colorida, cheia de dinheiro e um grande espectáculo”, analisa ainda Valarie Tan, investigadora do Mercator Institute for China Studies, na Alemanha.
Mas o romance depressa azedou assim que Trump começou a apontar a China como a principal responsável pelos problemas dos Estados Unidos da América, refere Rana Mitter. “Havia um sentimento que era perigoso ter mais quatro anos de um presidente muito imprevisível e cujo maior alvo de hostilidade era a China”.
Durante todo o ano de 2020, o Partido Comunista Chinês esteve dividido quanto a qual dos candidatos seria o melhor para a China, realça ainda o historiador. Por um lado, Trump “retirou a liderança norte-americana do palco mundial, abrindo para a China se posicionar como um agente positivo”, diz Valarie Tan. “Se Trump tivesse vencido, seria mais fácil para a China prosseguir essa narrativa”, sublinha. Por outro lado, o regime comunista teria tido de continuar “na defensiva” durante um segundo mandato de Trump, nomeadamente no sector tecnológico. Aliás, mesmo à beira de abandonar a Casa Branca, o presidente norte-americano continuou a restringir as empresas tecnológicas chinesas.
No fim de contas, as autoridades chinesas encaravam com maior preocupação uma potencial vitória de Joe Biden, acrescenta Rana Mitter, porque o candidato democrata “iria usar com a China uma linguagem diplomática mais racional, mais reconhecível, embora mantendo uma política muito semelhante”.
Ao contrário de Trump, Biden “poderá conseguir envolver líderes de outros países, sobretudo dos parceiros transatlânticos na Europa”, disse Valarie Tan. “Isso preocupa muito a China”.
Inimigo comum
Surpreendentemente, também muitos dissidentes chineses apoiaram Trump. “Para eles era o fim porque têm medo de que Biden use uma abordagem mais suave ao enfrentar o Partido Comunista Chinês no que toca aos direitos humanos”, analisa Valarie Tan. “Alguns chegaram ao ponto de partilhar as mentiras que Trump criou” sobre as eleições, lamenta a analista. Outros criaram grupos na rede social chinesa WeChat para em conjunto rezarem pela vitória do republicano.
Um fenómeno semelhante aconteceu em Hong Kong, disse ao EXTRAMUROS Maggie Shum, que faz parte do projecto Presidential Transition Index da Universidade of Notre Dame, nos Estados Unidos.
A investigadora acredita que os protestos pró-democracia de 2019 causaram uma polarização extrema da política em Hong Kong, com o Governo e a comunicação social vista como próxima das autoridades a “perderem a sua legitimidade”.
“Nas redes sociais há muitas pessoas de Hong Kong a questionar os resultados das eleições e a referir uma série de teorias da conspiração” para defender que Trump foi o verdadeiro vencedor, explica.
Após o Twitter ter bloqueado o perfil do republicano, muitos cibernautas de Hong Kong colocaram Trump como a sua imagem de perfil na rede social, numa demonstração de solidariedade. Mesmo o Apple Daily, o jornal mais popular da cidade, detido por Jimmy Lai, um empresário pró-democracia, não se coibiu de partilhar “desinformação copiada directamente da Fox News”, lamenta Maggie Shum.
Foi também durante os protestos de 2019 que se começaram a ver nas ruas de Hong Kong manifestantes a agitar bandeiras norte-americanas e a erguer fotografias de Trump. “As pessoas viam-no como um homem forte que podia enfrentar a China de uma forma que pudesse ajudar Hong Kong a relançar a democratização”, realça a académica.
Uma imagem que também tornou Trump popular em Taiwan, cujo reconhecimento e participação na comunidade internacional tem sido restringido pela China. “Os taiwaneses ficaram contentes de ver alguém que finalmente iria punir” o regime comunista, adiantou ao EXTRAMUROS Chen Fang-Yu.
O co-editor do blog ‘Quem Governa Taiwan’ assume que a presidência liderada por Trump de facto “melhorou significativamente” as relações entre Washington e Taipé, levando a que os taiwaneses desejassem a reeleição do republicano. Um anseio que originou uma invulgar aliança. Desde o início de 2020 que muitos meios de comunicação de Taiwan começaram a republicar artigos do Epoch Times, um jornal do movimento religioso Falun Gong, banido na China, que “em particular descrevem os democratas como pró-China e pró-Xi Jinping”, diz Chen Fang-Yu.
Também nas redes sociais em Taiwan se espalharam as teorias da conspiração em torno da prolongada contagem de votos. “Alguns extremistas taiwaneses,” nota Chen Fang-Yu, “chegaram a demonstrar apoio ao ataque ao Capitólio”, nomeadamente na rede social Parler, popular entre a extrema-direita.
Ataque ou protesto?
O ataque de 6 de Janeiro foi comparado em Taiwan ao ‘Sunflower Movement’, um movimento de estudantes que em 2014 ocuparam o parlamento, obrigando o governo a abandonar um acordo de liberalização do comércio de serviços com a China continental. “Há pessoas em Taiwan que descrevem o ataque ao Capitólio como um acto de desobediência civil, um protesto legítimo”, avalia Chen Fang-Yu, com alguns cibernautas a apelar mesmo a novos ataques durante a tomada de posse de Biden, hoje.
O ataque ao parlamento norte-americano tem também sido comparado nas redes sociais à ocupação do Conselho Legislativo de Hong Kong em 2019, considera Maggie Shum. Para a investigadora, isso reflecte como “os métodos dos movimentos democráticos ou de luta por direitos fundamentais estão a ser usados pela extrema-direita para desafiar a democracia”.
Também a imprensa estatal chinesa comparou, mas num tom negativo, o ataque ao Capitólio à ocupação do parlamento de Hong Kong. Afinal, lembra Valarie Tan, adequa-se à tese do Partido Comunista de que “os jovens de Hong Kong têm-se manifestado devido à ingerência de forças estrangeiras”.
Desde que Trump levantou dúvidas sobre a contagem dos votos logo no dia das eleições que a imprensa chinesa tem usado a polarização política “quase diariamente como um exemplo de como a democracia norte-americana se tornou uma farsa e um fracasso”, diz Rana Mitter.
O ataque ao parlamento norte-americano reforçou ainda mais, junto dos políticos, intelectuais e cibernautas chineses, uma imagem dos Estados Unidos como uma superpotência em declínio, acrescentou o historiador.
Alguns nacionalistas chineses, auto-intitulados “lobos guerreiros”, chegaram mesmo a saudar o ataque ao Capitólio porque “para eles isso representa a morte da América, a queda da democracia”, considera Valarie Tan.
A imprensa estatal não mencionou a participação recorde nas eleições norte-americanas, sublinha a analista, preferindo destacar incidentes que, por contraste “ajudam a promover esta ideia de que o que o Partido Comunista Chinês está a fazer é bom”.
O regime de Pequim aproveitou também a recusa das principais televisões norte-americanas em transmitir um discurso em que Trump mentiu repetidamente sobre as eleições, e mais tarde a suspensão dos perfis do republicano em várias redes sociais, para acusar os Estados Unidos de hipocrisia no que toca à liberdade de expressão. Ainda assim, sublinha Valarie Tan, a imprensa chinesa não se alongou quanto o controlo das redes sociais, uma questão “demasiado sensível”. “Os cibernautas chineses sabem que estão a ser censurados, não gostam e estão muito preocupados com o que escrevem na Internet”.
À espera de Biden
Trump recusou-se a aceitar a derrota e adiou ao extremo uma transição coordenada com a futura administração de Biden, que mesmo em condições normais, poderia demorar “meio ano ou mais” até estar concluída, diz Chen Fang-Yu.
Para Taiwan, alerta o analista, isto poderá criar um hiato durante o qual as relações com os Estados Unidos estarão em suspenso: “Uma grande oportunidade para guerrilha de informação ou manipulação da opinião pública por parte da China”.
Apesar da excelente relação da nova representante de Taiwan em Washington, Hsiao Bi-khim, com os democratas, Chen Fang-Yu não espera de Biden grandes gestos diplomáticos como os tomados nos últimos dias da administração de Trump. O analista aguarda uma relação discreta entre a Formosa e os Estados Unidos, com ênfase na cooperação em temas menos sensíveis, como a protecção ambiental. Para a ilha, a prioridade continua a ser relançar as negociações para um acordo de comércio bilateral, mas “é difícil saber qual será a política da nova administração”, diz Chen Fang-Yu.
Maggie Shum não tem dúvidas que Biden irá manter as sanções unilaterais impostas pela administração Trump aos principais dirigentes da Governo de Hong Kong. Mas a investigadora acredita que o democrata terá mais sucesso em “unir esforços com outros países para preparar um plano coerente para lidar com a influência da China”.
O Reino Unido introduziu na semana passada restrições a empresas que alegadamente usavam trabalho forçado na região autónoma chinesa de Xinjiang. “É de esperar”, diz Valarie Tan, “que Biden se una a parceiros e aliados na Europa numa posição mais dura a nível dos direitos humanos”.