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A nostalgia na fotografia

March 10, 2021

A nostalgia na fotografia

Apresento hoje uma selecção de dez fotografias produzidas entre os anos 80 e 90 do século passado pelo fotógrafo português Jorge Veiga Alves e que retratam um pouco a sua vivência em Macau, quando este ainda era um território sob administração portuguesa. Para matar saudades, o Jorge regressou à cidade em 2005 e em 2016, dando continuidade a esta especial colecção de imagens. Apesar de insistir que é apenas um fotógrafo ‘amador’, eu decidi retirar esta palavra deste meu modesto artigo.
Para acompanhar as fotografias seleccionadas por mim – e com a simpática e generosa colaboração do Jorge – a que baptizei de “Nostalgia”, apresento também algumas curiosidades culturais, como pormenores factuais, que podem complementar as imagens. Debato, além disso, o peso que terão estas na memória dos residentes falantes de cantonense.
Quero apresentar, através da escrita, símbolos visuais registados fotograficamente como mensagens não-textuais que a meu ver são merecedoras de ser traduzidas para os nossos leitores de língua portuguesa. Para quem quiser conhecer melhor o trabalho do Jorge pode visitar as páginas do facebook ou instagram.

 

Trabalhador de andaimes de bambu: Avenida Ouvidor Arriaga (1987)

Esta foto, feita a uma altura correspondente a um terceiro andar, documenta o perigo e a perícia técnica que envolve a actividade de montagem de andaimes em bambu. Jorge Veiga Alves

Os andaimes em bambu, utilizados em construções, têm impressionado desde sempre o mundo ocidental. Através de reportagens transmitidas lá fora, que versam sobre esta prática em Hong Kong, a técnica tornou-se conhecida também na Europa. Macau, frequentemente ignorada pelos meios de comunicação social europeus – exceptuando os portugueses – partilha muitas práticas da antiga colónia britânica.
Curioso é também o tecido de ráfia tricolor, que vemos na imagem e que se tornou um dos símbolos identitários de Hong Kong, sendo também parte da identidade de Macau.


Ópera cantonense – Palco temporário junto ao templo de A-Má (1987)

Nesta foto procuro homenagear a ópera cantonense através do plano do olhar de um pequeno espectador maravilhado a ver e a ouvir os actores e a música!…
Não sei cantonense, mas, após o registo destes sons ter ficado gravado na minha memória já há décadas, agora, por vezes, comovo-me quando ouço novamente estes sons de Macau.
Jorge Veiga Alves

Nesta fotografia vemos novamente o tecido tricolor da imagem anterior. Os espectáculos de ópera cantonense em Macau acompanham celebrações religiosas taoistas e budistas, e os palcos temporários para a apresentação das óperas são construídos em bambu. Hoje utilizam-se também outros materiais.


Artesão de bonecos de farinha de arroz (1987)

Esta foto, a pior em termos técnicos da série que fiz sobre a actividade deste artesão, é, todavia, a que melhor mostra a face do artesão em causa. Este senhor, que me informaram que era conhecido como Lam Pac (Tio Lam) fabricava, cuidadosamente, bonecos com farinha de arroz, um artesanato cada vez mais raro de encontrar. Jorge Veiga Alves

Imagens deste artesão de bonecos de farinha de arroz têm aparecido desde o século passado em inúmeras publicações. Durante décadas era possível encontrá-lo no centro de Macau a fazer as pequenas figuras de farinha. Além de vender ao público, também fazia decorações de pratos em restaurantes.
Entre as figuras que podemos observar nesta imagem, encontram-se bonecos conhecidos da tradição chinesa, além do Doraemon, figura japonesa de filmes de animação; o Old Master Q, imagem banda desenhada de Hong Kong; e ainda um Pai Natal.
O portal “Memória de Macau”, da Fundação Macau, tem um artigo em mandarim sobre este homem que foi convidado pela então administração portuguesa a apresentar esta tradição popular em Portugal.


Artista. Avenida Horta e Costa (1992)

Esta foto documenta algumas lojas antigas de Macau e um artista de rua. Muitas destas actividades estão actualmente extintas. Jorge Veiga Alves

Nesta fotografia de 1992, encontramos um retratista a trabalhar entre uma farmácia chinesa e um restaurante de canjas (‘congee’) de estilo cantonense, negócios que ainda existem no mesmo local. Reconheço de imediato uma série de figuras da cultura pop de Hong Kong: em cima à direita está o músico Leon Lai; logo em baixo à esquerda encontra-se o apresentador de televisão Ivan Ho, que tinha a alcunha de Ho-B, uma palavra que virou calão em cantonense para fazer referência ao órgão sexual masculino das crianças; numa imagem mais pequena e em cima de Ivan Ho está o músico George Lam; à direita vemos a cantor da ópera cantonense Sun Ma Sze Tsang (1916-1997); e logo em baixo dessa imagem encontra-se Lydia Shum (1945-2008), actriz e apresentadora. As imagens são reveladoras da influência que estes músicos e a televisão de Hong Kong tinham naqueles tempos em Macau.



Adivinho (1987)

Esta foto documenta um adivinho à espera de clientela. Jorge Veiga Alves

Alguns termos que lemos em línguas europeias, como “adivinhos”, em português, “fortune tellers” em inglês, “voyants” em francês ou ainda “Wahrsager” em alemão, parecem dar diferentes perspectivas desta antiquíssima profissão tradicional chinesa. Em cantonense existem várias formas de adivinhação e, por isso, há uma certa precisão na nomeação de tais actividades.
Segundo comentários que li no grupo do Facebook “老餅話當年” (‘Idosos falam sobre tempos antigos”), onde esta fotografia foi partilhada, o homem que vemos na imagem trabalhava segundo as tradições do “Livro das Mutações” (trata-se de um clássico da China antiga com uma versão portuguesa do Padre Joaquim Guerra e brasileira de Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto, feita a partir da conhecida tradução alemã de Richard Wilhelm).
Vários comentários daquele grupo revelam que esta fotografia foi tirada no antigo prédio da empresa San Chong Hong (新中行), ao lado da também desaparecida Barbearia Shanghai (上海理髮店), no Largo de São Domingos.


Loja de tamancos: Pátio da Tercena (1987)

O dono desta loja era conhecido pelo nome de Kec Vong (屐王, Rei dos Tamancos), segundo me informaram. A foto, apesar do respectivo negativo já estar um pouco degradado derivado à sua antiguidade, documenta ainda uma das actividades artesanais que julgo já estar extinta em Macau: a feitura de tamancos em madeira. Jorge Veiga Alves

Ainda no grupo “Idosos falam sobre tempos antigos”, onde a fotografia ao lado também foi partilhada, fiquei a saber que esta era uma loja de tamancos de madeira, situada na Rua da Tercena. Segundo uma publicação da Fundação Macau em mandarim, a indústria de tamancos de madeira foi desaparecendo progressivamente nos anos 1980. A única esperança que a indústria renasça seria possível com a expansão das “indústrias culturais e criativas” de que tanto se fala, e com o apoio da administração de Macau.
Mais uma nota pessoal: a última vez que vi este estabelecimento aberto foi em finais dos anos 1990 e já não se comercializavam sapatos, mas snacks locais. Lembro-me bem das massas que vendiam…


Tendinhas (1992)

Esta foto documenta uma das muitas ruas com tendinhas em Macau próximas da Rotunda Carlos da Maia (Três Candeeiros) e que eram e continuam a ser um centro de atenção dos residentes e visitantes de Macau. Ficam para sempre na memória as gentes, os sorrisos, os produtos, as cores, os cheiros, os sons!… Jorge Veiga Alves

A Rua Fernão Mendes Pinto, entre a Rotunda de Carlos da Maia e a Estrada de Adolfo Loureiro, é conhecida entre os residentes de Macau pela expressão cantonense “Rua das Frutas”. A fábrica de farinha “Kuok Kei”, na fotografia com um letreiro branco e caracteres vermelhos, é hoje uma cadeia de lojas de frutas e sumos em Macau, com negócio no estrangeiro.


Calígrafo. Templo do Bosque de Bambu / Templo de Choc Lam Chi (1989)

Esta foto procura mostrar dois elementos fundamentais na cultura de um povo e na transmissão da respectiva identidade: os idosos e os locais históricos. São eles que fazem a ligação entre o passado e o presente. No caso desta foto, procuro também homenagear a milenar e bela arte da caligrafia chinesa. Jorge Veiga Alves

Uma pesquisa no Google revela de imediato que há pouquíssima informação na internet sobre o templo Choc Lam Chi (竹林寺) / Templo do Bosque de Bambu (que os autores Maria de Lourdes Rodrigues Costa e José Simões Morais colocam um acento circunflexo no nome: Chôc Lam Chi.)
Reparo que em português existe ainda menos informação sobre este templo, apesar de um atentado à bomba em 1998 perto do local fazer parte da memória colectiva dos residentes de Macau. O Jorge teve a simpatia de me relembrar também o que escreveu o historiador Padre Manuel Teixeira sobre este templo. Mesmo assim, a breve descrição geral do espaço e a apresentação da tradição budista “Amitābha” (अमिताभ) não revelam muito sobre a sua história. Em mandarim existem apenas algumas referências sobre o templo.
Para obter mais informações sobre esta imagem recorro novamente ao grupo do Facebook “Idosos falam sobre tempos antigos” onde também foi partilhada. O fotografado foi aí identificado como sendo o mestre Kai Man (戒聞, 1915-2010), religioso responsável pelo tempo e filho do famoso pintor cantonense Fung Yun Chi (馮潤芝, 1852-1937) e avô da actriz e cantora de Hong Kong Charlene Choi (蔡卓妍). Kai Man destacou-se também enquanto pintor e calígrafo, tendo tido um significativo impacto na arte tradicional cantonense em Macau.
Ainda uma nota contraditória a esta informação: o coleccionador de Macau Sam Wai Lon (岑偉倫) escreveu-me que a pessoa na fotografia, um conhecido seu, tinha várias funções naquele espaço, nomeadamente a de caixa, passando os recibos com pincéis.


Estaleiro naval em Coloane (1988)

Esta foto documenta a activa indústria de construção naval em madeira que existia em Macau. Aqui tive a felicidade de fixar este expressivo sorriso de alguém que percebeu que a sua actividade iria ser registada em fotografia. Jorge Veiga Alves

 


Pesca artesanal com aguchão: Coloane, Avenida 5 de Outubro (1987)

Esta foto procura fixar a memória, já distante, de uma das artes de pesca artesanal de Macau, o aguchão, no ambiente calmo à beira-mar de Coloane. Jorge Veiga Alves


Para terminar as referências e anotações às fotografias do Jorge queria ainda adicionar uma nota sobre estas dez imagens, seleccionadas de um vasto espólio fotográfico reunido ao longo de várias décadas pelo autor que, aliás, se mantém bastante activo e dedicado a criar fotografia.
Tive a ideia de aqui mostrar este trabalho pois julgo ser interessante analisá-lo no contexto do tema da ‘nostalgia de Macau’, sentida por asiáticos e europeus que conheceram ou conhecem a cidade, mas também enquanto antropólogo visual e, não menos importante, como instagrammer.
Tal como muitos membros desta rede social e de diversos grupos no Facebook, onde Jorge Veiga Alves tem partilhado as fotografias, também eu expresso o meu agradecimento pela generosidade e amor que demonstra com este trabalho por Macau, sobretudo neste específico momento em que a nostalgia é um tema muito presente entre os que debatem a questão identitária de Macau.
Esta obra fotográfica, enquanto herança dos últimos anos da administração portuguesa, serve como base de intersecção de uma dupla nostalgia, a asiática e europeia, e também como meio para reflectir sobre a nostalgia e a sua tradução enquanto conceito.
Ainda não tive oportunidade de conhecer o autor pessoalmente, mas as redes sociais permitiram, como que por um milagre, este encontro virtual através de uma descoberta ao acaso, no ano passado, de uma ou duas fotografias suas que (re-)definiram e (re-)evocaram a minha infância enquanto criança e “cidadão estrangeiro” – em criança vivi ilegalmente em Macau desde que nasci, em 1987, até à regularização da situação dos imigrantes ilegais no início dos anos 1990. Estas fotografias chamaram a minha atenção pela questão estética mas também, sem dúvida, pela nostalgia que despertaram em mim.
Muitas vezes fantasio o mundo como uma rede infinita e complexa de crenças e conhecimentos. Imagino-o múltiplo e em constante multiplicação. Neste sentido, as diferentes formas de compreensão do mundo nas diferentes culturas permitem uma diversidade de formas de olhar a fotografia e (re-)inventar as diferentes traduções da nostalgia como uma espécie de plataforma de reflexão.
A nível pessoal, a intersecção entre a fotografia do Jorge e a nostalgia que sinto foi, primeiramente, geográfica e física e é agora temporal. Mas mais uma vez: as redes sociais permitem que estas imagens de Macau saciem uma nostalgia mais colectiva, que vamos neste artigo tentar expor e traduzir para português.
O Jorge escreveu-me: “Algumas pessoas identificarem familiares nas minhas fotos antigas e até perguntaram se tenho fotos do sítio tal onde o familiar tal tinha uma loja. A mim isso comove-me.”
Garanto aqui também que não sou o único a olhar para as fotografias saudosamente, porque os facebookers de expressão cantonense contribuem com os seus comentários, às vezes muito interessantes e reveladores da paixão que sentem por Macau.
Olhemos para a fotografia como um meio de comunicação no contexto de uma discussão artística ou estética, teórica ou prática. A verdade é que no presente contexto global e globalizante, o trabalho fotográfico está apenas concluído quando é visualizado, interpretado ou criticado.
A comunicação é precisamente este intercâmbio que ocorre durante a visualização, a interpretação ou a crítica feita à fotógrafa ou ao fotógrafo. E é isso que vejo que o Jorge tem feito com sucesso nas redes sociais. Espero que o mesmo possa acontecer numa futura exposição e apelo a que tal seja feito, em Macau e em Berlim, onde vivo.
Ainda em relação à globalização das coisas, em geral, e da fotografia, em particular, a evolução tecnológica tem permitido conferir às imagens diferentes estilos, que variam na sua textura e personalidade. Este estilo é justamente um símbolo que serve como base de cruzamento entre a nostalgia e a simpatia sentida pela maior parte das pessoas no mundo.
Depois, podemos analisar cuidadosamente os detalhes de cada fotografia: as roupas, o corte de cabelo, os tipos de caracteres e letras, os modelos dos carros, as diferentes áreas de actividade profissional, entre outros. A nostalgia é justificada e o trabalho fotográfico adquire valor porque estamos a olhar para fotografias que contam uma história que já se extinguiu.
As micropartículas (píxeis), as cores ou mesmo os estados de alma de uma simples fotografia podem ser alterados digitalmente através de procedimentos informáticos. Mas ainda não existem programas informáticos que permitam expressar de forma tão precisa uma composição ou um conjunto de símbolos passados. A fotografia é justamente um meio para (i)mortalizar e perpetuar visualmente um momento específico ou uma sequência de momentos específicos.
Tendo eu nascido numa colónia, penso que só o facto de estar a escrever uma crítica teórica sobre uma obra fotográfica da Macau desses tempos é igualmente um ponto interessante – e até essencial – para a seguinte reflexão: a continuidade identitária pós-colonial e a aceitação da herança colonial é simultaneamente um tema universal e muito local. Isso vem elevar ainda mais a complexidade que a nostalgia e a tradução dessa nostalgia possam ter.
Gostar de uma obra artística é, na minha opinião, o aspecto fundamental na apreciação pessoal dessa obra.
O que quero dizer é que vejo uma coerência artística e estética nas fotografias do Jorge, um trabalho que atravessa várias décadas e que vai além Macau, retratando outros lugares do mundo, seja Portugal ou diferentes países asiáticos.
O que me levou a escrever sobre estas fotografias foi um cruzamento dos gostos do Jorge e meus. A minha teoria aplica-se igualmente às fotografias feitas pelo autor em Portugal. Embora eu sinta menos afectividade por esse país do que o Jorge, constato que a nostalgia é cada vez mais “traduzível” entre as culturas, face a um mundo cada vez mais padronizado e uniforme. Pelo menos, no caso da evolução da tecnologia e da estética da fotografia.
Tal como todos os tipos de registos, o espólio de fotografia do Jorge tem também um lado autobiográfico, que coabita com diferentes pessoas e actividades. E, claro, com o meu conceito de nostalgia.

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